Honrando os Africanos Escravizados
- Glaucia Paiva -
Publicado no livro Toques na Alma 2, 2019, do Instituto Conexão Sistêmica.
O significado da palavra escravo vem do Latim SCLAVUS, “pessoa que é propriedade de outra”; que ou aquele que, privado da liberdade, está submetido à vontade de um senhor, a quem pertence como propriedade.
O sentido da escravidão seria buscar escravos para fazer as tarefas que você não quer fazer.
A captura dos escravos era feita pelas próprias tribos africanas através da: disputa de território; por ser prisioneiro de guerra; por contrair dívida que seria paga com seu trabalho escravo; por ter cometido um crime e a punição seria a escravidão; por se oferecer como escravo em troca de alimento ou bens para a salvação de sua família; por pertencer a povos inimigos e por consequência ser considerado culturalmente inferior; como troféus em brigas; e, principalmente, pelo valor recebido por essa mercadoria humana, dessa forma os favorecidos poderiam garantir a estrutura e a proteção de seus reinos.
A ideia de homem como mercadoria, sendo comprado e vendido, é uma prática muita antiga em todas as culturas e impérios. Os Egípcios e os Núbios, há cinco mil anos, usavam essa prática. Portanto, quando os Portugueses entraram nesse negócio, o comércio de escravos era algo que já fazia parte da humanidade. Segundo Alberto da Costa e Silva, “a ideia da escravidão só passou a ser vista como algo infame no século 19, e mesmo assim não de forma unânime. Em alguns países, essas práticas só foram abolidas no século 20. Na Arábia Saudita, ela acabou legalmente em 1962, mas ainda é praticada. Na Etiópia, foi abolida em 1942, e na Mauritânia em 1982”.
Tirmiziou Diallo, sociólogo, expressou que durante séculos todos os homens e mulheres capazes de trabalhar foram escravizados, o que significa que muitas aldeias só tinham os velhos, mulheres e crianças e por consequência toda a sua economia e suas estruturas políticas e sociais foram destruídas.
O Brasil importou mais de 12 milhões de escravos Africanos durante 300 anos.
Teoricamente, a Lei Aurea assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1988 determinou que essa forma para execução de tarefas e construção de patrimônio fosse abolida.
Durante esse período de 300 anos, a imagem que foi construída de um Africano escravizado no Brasil era “de um ser inferior e sem alma”. Essa memória de discriminação e preconceito, fortalecida por tantas repetições, permanece no sistema de crenças do povo Brasileiro e se expressa de tantas formas diferentes no nosso dia a dia.
Segundo a Epigenética, um registro transgeracional pode gerar influência em até 7 gerações. Portanto, essa memória que está em nosso DNA transmite uma tendência no comportamento de todos nós.
Assim sendo, a sociedade Brasileira recebe a força desse arquétipo que “os negros são inferiores e não tem alma”, influenciando nossa condição de submissão diante dos poderosos. Se somos uma mistura de Negros, Índios e Portugueses, uma grande maioria de Brasileiros carrega em alguma proporção essa crença, e, por ela estar na base do nosso comportamento, permitimos com muita frequência o desrespeito constante, associado aos que tem o poder.
Segundo Pedro Doria, jornalista e escritor, em uma família de brancos vai ter sempre um ancestral que foi traficante de escravos e que teve escravos na família, e em uma família de negros vai ter sempre um ancestral que foi capturado em algum ponto da África e foi escravizado no Brasil.
Do ponto de vista do Pensamento Sistêmico, por essas pessoas serem capturadas e roubadas dos seus núcleos familiares e de sua Pátria, elas podem ter vivido um profundo sentimento de exclusão.
As perguntas que surgem são: como esses homens e mulheres chegavam ao Brasil? O que eles trouxeram em seus “campos” em relação à sua Pátria, à sua família e à sua possibilidade de sobrevivência? Em que condição sistêmica foram construídas as primeiras famílias desses Africanos escravizados no Brasil? O que eu posso estar carregando sobre este aspecto e como isso influencia a minha vida?
Partindo dessas questões, desenvolvi uma sequência de 4 passos que vou descrever como uma “Estrutura de Diferenciação Coletiva”, para gerar a possibilidade de um movimento de alívio nesses sistemas tão carregados de dores emocionais e desequilíbrios.
Recebi suporte e orientação na construção dessas estruturas pelas seguintes professoras: Dra Ursula Franke Bryson – Alemanha, Dra Guni Baxa – Áustria, Brigitte Champier de Ribes – Espanha, Astrid Habiba – Suiça, além de meu parceiro Oswaldo Santucci que me ajudou na elaboração dos conceitos e execução desse trabalho.
É possível constelar individualmente um cliente com um assunto específico sobre a escravidão usando as estruturas descritas abaixo, e também de forma coletiva de tal forma que aquele que for o representante do primeiro antepassado seria o representante de todos os antepassados que vieram da África para o Brasil. A Estrutura de Diferenciação coletiva tem um aspecto muito interessante: ficando no coletivo, é menos pessoal, dando a todos que estiverem assistindo a possibilidade de se reconhecerem em cada passo e também possibilitar movimentos de alívio dessas dores em seus sistemas familiares.
Vou descrever a Estrutura de Diferenciação coletiva que realizei no Instituto Conexão Sistêmica em fevereiro de 2019 (1a edição).
Por ser coletiva, cada estágio pode ser representado por 2 ou 3 pessoas, mas é possível singularizar individualmente.
A cada passo que for dado, é importante que se dê um tempo para promover a conexão entre os clientes e os representantes; acontecer a conexão entre os representantes; que seja possível expressar a dor contida para poder gerar alívio; e, principalmente, observar e perceber os movimentos que a inclusão das “Forças Naturais de Cura” podem gerar.
Os passos são os seguintes:
1 – Dar um lugar para os primeiros antepassados Africanos escravizados que chegaram no Brasil.
Nesse primeiro estágio, colocar representantes para os primeiros antepassados Africanos escravizados que vieram para o Brasil em frente aos clientes. Se for individual, colocar o primeiro Africano escravizado do sistema familiar do cliente que chegou no Brasil. Observar a conexão entre eles e, em seguida, os clientes farão uma inclusão através das seguintes frases de auto-regulação “eu te vejo”, “eu também carrego o seu sangue” e “você faz parte de nós”.
2 – Atrás dos primeiros antepassados, dar um lugar para a África.
Nesse segundo estágio, colocar um representante para a África atrás dos primeiros antepassados, e esses se viram para seu país de origem com o propósito de estabelecer uma conexão, entrar em contato, para que a dor da separação consiga ser expressa e possibilitar uma reconexão. Após este estágio, as frases de auto-regulação que os representantes dos primeiros antepassados irão expressar para a África seria “eu carrego você dentro de mim” e “eu tenho a sua força”.
Em seguida, os clientes olham para a África e dizem “um pedaço de mim veio de você” e “eu também carrego a sua força”.
3 – Dar um lugar entre a África e os primeiros antepassados para os seguintes aspectos:
as esposas, os filhos e os pais dos ancestrais que vieram para o Brasil e foram deixados por lá; os responsáveis pela escravidão; as circunstâncias da época.
Nesse terceiro estágio, colocar representantes para os aspectos citados acima, dando um tempo para a expressão da dor poder acontecer. As frases de auto-regulação que os primeiros antepassados podem dizer para sua família seriam “eu não escolhi abandonar vocês”, “eu sinto muito”, “mesmo longe eu sempre vou fazer parte”. Para o responsável pela escravidão, “a sua ação gerou toda essa consequência”; e para as circunstâncias da época, “eu te vejo e você faz parte”. Depois, ao lado de cada aspecto, colocar um representante de uma “Força Natural de Cura”. Ao lado da África, colocar um representante para a “Força Espiritual da África”. Essas são as forças, além das frases de auto-regulação, que podem trazer movimentos de cura e alívio para estes sistemas. Observar quais movimentos a inclusão dessas forças podem gerar. Se for necessário, atrás de cada aspecto descrito acima pode-se colocar o recurso “A Justa Razão”*.
4 – Dar um lugar para as primeiras 4 ou 5 gerações desses ancestrais aqui no Brasil.
Nesse quarto estágio, colocar representantes para as primeiras gerações que foram desenvolvidas pelos primeiros ancestrais aqui no Brasil, dando um tempo para que a expressão dessas conexões entre os clientes e essas gerações possam acontecer. Em seguida, colocar uma “Força de Natural de Cura” ao lado de cada geração. Observar que movimentos acontecem entre os representantes das gerações e os clientes. Em seguida, os clientes usam as seguintes frases de auto-regulação em direção às gerações: “eu vejo vocês”, “eu venho de vocês” e “todos vocês pertencem e fazem parte”.
O Objetivo seria proporcionar movimentos de alívio e cura desses sistemas através da auto-regulação gerada pela inclusão e o sentimento de pertencimento. Trabalhar para transformar esse arquétipo, essa crença básica de que o Africano escravizado é inferior e não tem alma, tanto no aspecto pessoal quanto social pode, trazer um movimento de dignidade para nossa sociedade.
Esse país também foi construído com a força dessas pessoas, que nos trouxeram sua comida, música, religiosidade e toda sua cultura.
Eu honro a porção Africana que existe dentro de mim.
Bibliografia
Alberto da Costa e Silva, ex-diplomata, membro da Academia Brasileira de Letras e autor do livro “A enxada e a lança”.
Luis Felipe de Alencastro: professor da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. É professor emérito da universidade de Paris Sorbonne, onde lecionou por 14 anos, e autor do livro “O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul”.
Érica Turci: “História da escravidão – Exploração do trabalho escravo na África”.
“Guia Politicamente Incorreto: Episódio 03” – Documentário SKC – youtube.
Tom farias, jornalista e escritor – trajetória da escritora Carolina Maria de Jesus.
Pedro Doria é um jornalista e escritor brasileiro.
Tirmiziou Diallo sociólogo escreveu: “Tradizionnelle Erziehung bei Ful’Be in West Afrika”.
Epigenética: Como a ciência está revolucionando o que sabemos sobre hereditariedade, Richard Francis.
SOBRE A AUTORA
GLAUCIA PAIVA
Terapeuta desde 1992. Desenvolveu o método NEXO | Renascer Sistêmico nos últimos 10 anos, atendendo individualmente e desde 2021 ensinando esta Especialização, formando Terapeutas Somáticos Transgeracionais.